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“Por que não existe o dia do homem branco cis?”, uma conversa com a escultora Lyz Parayzo

29/01/2021 - Por ArtRio

“Por que não existe o dia do homem branco cis?”, foi a pergunta que me fez a escultora Lyz Parayzo, de 26 anos, em nossa conversa via Zoom. Tínhamos chegado no tópico central do que havia planejado como pauta, o dia da Visibilidade Trans, data recentemente incluída no calendário nacional. E ela completou: “por que as pessoas acham que podem reduzir uma pesquisa de 5 anos à minha identidade? Não quero ser, enquanto profissional, refém de um único aspecto da minha identidade, assim como o homem cis não é. […] Eu não faço arte trans, eu faço escultura.”

Lyz está em Paris onde cursa mestrado em Belas Artes desde o ano passado na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, conhecida por ter formado nomes como Monet, Renoir e Degas. Falando do ateliê da escola e em meio a poucas interrupções de colegas, ela me mostrou pela câmera no que vinha trabalhando. As esculturas eram novos PopCretinhos, objetos-armas que, muito além de um recorte identitário, são parte do desenvolvimento de sua pesquisa sobre o projeto concretista brasileiro e que nesse momento se dedica a produção pop de Waldermar Cordeiro, artista italiano radicado no Brasil.

A conversa começou, ao menos em seus primeiros minutos, como qualquer outra de tempos pandêmicos: ela está trabalhando e falando comigo no que pode ser o último dia antes do novo lockdown, quando perderá o acesso ao ateliê que fica fora do raio de 2 quilômetros no qual circulará E acabamos chegando no início de sua trajetória, muito distante da Paris que habita hoje: de origem periférica, de Campo Grande (RJ), começou a estudar artes na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, com uma produção mais – segundo a própria – panfletária e ativista, com performances que  denunciavam o racismo, classismo e a transfobia do sistema de arte carioca. 

“Meu trabalho começou como um ativismo, mas como eu trabalhava e estudava em uma escola de artes esse ativismo tomou uma caráter artístico. Então, além do recorte de identidade – eu nasci em Campo Grande, que é periferia do Rio de Janeiro, eu sou uma pessoa racializada – eu tinha então vários recortes que…” Somos interrompidas por uma advertência. Apesar de manter o distanciamento e do espaço vazio e aberto, Lyz abaixou rapidamente a máscara para que o som ficasse melhor e, bem, fomos interrompidas. “Eu tenho todos esses recortes. Imagina, em 2015 esses assuntos não eram parte de um debate que estava sendo capitalizado, por exemplo, pelo mercado de arte, pelas galerias ou por instituições.”

A obra que desenvolvia no período, da qual comenta que não havia espaço ou desejo se ser capitalizada pelo circuito, era literalmente panfletária. Lyz produziu uma série de panfletos semelhante aos de prostituição com os telefones e endereço de galerias e museus que não pagavam aos artistas que expunham.

Sua questão acabou por se transformar, assim como o mercado, que, aos poucos, pareceu desenvolver um fetiche por questões específicas: “Como fazer um trabalho que desse conta da ausência do meu corpo para os espaços institucionais mas sem perder a coerência com o meu discurso? A escultura com estética concretista então se tornou o meu novo cavalo de troia”. Afinal, “eu não quero ser vista como uma artista trans. Eu quero ser vista como uma boa escultora. Essa é uma das razões para eu ter vindo para uma escola francesa e ter investido como investi na minha formação.”

Sua solução frente às mudanças, contraditórias e muito recentes, foi estudar a “história da arte dos vencedores” – o que para a artista seria o projeto construtivo brasileiro. “Comecei a revisitar artistas como Lygia Clark e Waldemar Cordeiro, só que colocando uma camada subjetiva da minha identidade, que é esse corpo que catalisa violências.” Quando falamos acima de uma série de objetos-armas, era também (assim como a arte panfletária com panfletos) no sentido literal: “Por isso eu faço trabalho de autodefesa, por conta dessas violências que meu corpo catalisa, seja no espaço público ou privado, por não ser normatizado no lugar de poder.”

“Ou então no lugar acadêmico. Seja no Brasil ou seja na França. […] Eu achei que quando eu tivesse uma condição financeira melhor as coisas melhorariam, e realmente, tenho uma qualidade de vida muito boa agora, mas não quer dizer que estou imune a diversos tipos de opressão. Por um lado no Brasil eu me sinto muito mais protegida porque tenho uma rede de pessoas e de ativistas, aqui eu não tenho uma rede, sou só uma estudante. É uma nova cultura que tenho que assimilar e criar minhas defesas.”

Sobre o local de criação das “novas defesas”, ser “só uma estudante”(-artista) também implica em uma permissão para estabelecê-las em um outro campo: “Minha biografia segue muito ligada ainda a obra mas meus desafios se tornaram muito mais escultóricos agora.” Uma forma de perceber as marcas dessa trajetória biográfica ou subjetiva nessa identidade escultórica a ser desenvolvida pode estar no aspecto que se mantem constante: a presença das serras / armas. Ao menos por enquanto as modificações parecem orbitar esse elemento principal. Os planos são incluir possivelmente o uso do couro colorido, diluir a ocupação no espaço criando armas-móbiles e, como podemos ver em trabalhos recentes, acrescentar dobradiças, cuja mecânica é seu atual interesse.

“Eu sei que eu ia vender muito mais se eu batesse nessa tecla da culpa: ‘vocês têm uma dívida comigo, me paguem, comprem meu trabalho’… Mas eu não estou interessada nisso agora. Quero enquanto profissional da arte me emancipar da minha identidade e criar um trabalho que desenvolva um debate crítico diante da historiografia da arte brasileira  a partir da experiência do meu corpo nos espaços institucionais”.

“Mas então, o que você acha da data?” pergunto ao final da conversa. Não é simples. Desde nossa primeira troca de e-mails essa foi uma questão delicada. Obviamente um artista ou uma obra não podem ser reduzidos em um termo, por mais que isso seja útil atualmente para as vendas e que a palavra em questão resuma uma camada biográfica real. Mas a data, que é perigosa por “reduzir o compromisso a um único dia e aliviar a consciência”, pode ajudar a desenvolver um debate crítico sobre sua própria necessidade. Por que temos o Dia da Visibilidade Trans? Obviamente, por ser sintoma de um apagamento. Para que ele pode servir?

“Em uma realidade de precarização do artista, o artista com uma identidade dissidente é ainda mais precarizado. […] As instituições podem fazer catálogos maravilhosos mas a situação lá também é precarizada. Elas não compram obras para os acervos, não pagam pela participação nas exposições e nem mesmo para produção do trabalho. A precarização nas instituições se reflete no artista que não é pago.  Se minhas obras estão hoje em coleções como a do MASP é porque eu corri a atrás e doei a obra porque sabia do valor que isso teria para a minha carreira. Eu não fui paga. […] Inclusive, coloca isso no texto, minha obra está no porão do MASP.”

“Não sei se você conhece a Vulcanica Pokaropa (@vulknik). Ela foi a primeira artista trans a fazer uma exposição no MAM de São Paulo, e o museu tem 70 anos. Élle de Bernardini (@elleiote) foi a primeira artista trans a entrar em um acervo no Brasil. E foi em 2015. A gente tá em 2021. É uma coisa muito recente. Eu fui a primeira a entrar no acervo do MASP e do MAR. É importante trazer esses dados para ter um registro on-line. Porque não é que esses corpos não façam arte. Eles fazem. Só não conseguem o mesmo espaço para se institucionalizar.”

Para isso, ao menos, pode servir a data. Para uma abertura institucional, para espaço na pauta – como essa aqui -, para ganhar destaque nas redes sociais e para aprendermos o que já deveríamos estar cansados de saber, que por trás de “categorias nichadas” pelo mercado estão artistas e identidades complexas a serem reveladas em cada obra. Ou seja, para um dia não precisarmos mais dessa data. Afinal, qual é o dia para compartilharmos obra de homem cis?

Lyz Parayzo vive e trabalha em São Paulo, Brasil e Paris, França. É representada no Brasil pela Casa Triângulo.



Na imagem: Lyz Parayzo, Bixinha X Quadrada Hexagonal, latão polido. CASA TRIÂNGULO | Entrevista por Júlia Paes Leme, janeiro de 2021

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